Nunca foi só sobre cabelo

Nunca foi só sobre cabelo

Um dia desses senti uma inquietação/necessidade de cortar mais do que as pontinhas do meu cabelo, e sem pensar muito fui lá e fiz (quarentena bateu forte rs). Eu mesma cortei enquanto fazia meu ritual de cuidados com ele, porque sim, desde que me livrei das pontas alisadas dedico um tempo semanal em cultivar meu cabelo crespo. Durante o corte, me lembrei de tudo que vivi com aquele cabelo, que há mais de 5 anos não era cortado e o quanto era libertador e simbólico fazer aquilo novamente. Enquanto cortava me despedia de tudo que vivi com ele (coisas boas e ruins) e me abria para viver coisas novas. 

Se você não for uma pessoa que passou por algum tipo de transição provavelmente vai achar bobagem tudo que leu até aqui, mas acredito que a maioria das mulheres crepas e cacheadas vão me entender. Na verdade não é segredo pra ninguém o quanto esta onda de empoderamento feminino a partir do cabelo vem crescendo a partir da última década. 

A questão é que nossa relação com nossos cabelos afro, ultrapassam a questão estética, que é também fundamental, mas fica muito mais interessante e eu ouso dizer revolucionário quando alcançam o nível ético e politico. Na realidade esses três fatores se entrelaçam e atuam conjuntamente. Isto porque, assumir um cabelo natural, para uma pessoa negra representa construir a própria identidade, retornar à suas origens se emancipar de um ideal de imagem branco.

 De acordo com Grada Kilomba (2019) o cabelo crespo, com penteados africanos, tranças, dreads, se tornaram um importante instrumento de consciência política “transmitem uma mensagem política de fortalecimento racial e protesto contra opressão racial. Eles são políticos e moldam a posição de mulheres negras em relação a “raça”, gênero e beleza”(KILOMBA, p.127, 2019). O que poderia ser um simples corte de cabelo, ou um penteado, se torna um grande movimento intersubjetivo de transformação. A partir do momento em que assumi meu cabelo natural comecei a refletir sobre pertencimento, opressões (de gênero, raça e classe), questionar os padrões estéticos impostos e ressignificar minha percepção de beleza, bem como provocar esse tipo de reflexão aos que estão a minha volta. 

Foi através do amor pelo meu cabelo natural que me reconheci enquanto mulher negra e desde então venho aprendendo a me amar e a amar tudo que se parece comigo. Pois o racismo cotidiano que nos coloca num lugar do que não é belo, inferior, indesejado, exótico, nos leva ao auto ódio e ao desprezo inconsciente e as vezes consciente de tudo que é parecido conosco. Mas é por meio do reconhecimento do lugar social que eu ocupo que me fortaleço, percebo que não estou sozinha e que ainda há muito pelo que lutar. Sei que durante a quarentena muitas pessoas tem decidido assumir seu cabelo natural e acho pertinente continuarmos afirmando que nunca foi só sobre cabelo.

Texto: Stefany Vieira

Ilustração: Keturah 

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