Minha Vida Maria

Minha Vida Maria

Minha vida Maria


Um amigo um dia me mostrou um vídeo. Me lembro de que na hora fiquei com raiva e sem entender o porquê de me enviar aquilo. O que ele estava querendo dizer? Por que estava comparando com a minha vida? Na hora não percebi o quanto aquele momento iria mudar tudo.

Antes disso, preciso contar um pouquinho da minha história. Sou de uma cidadezinha chamada Pacatuba no Ceará. Terra de gente boa, afetuosa, guerreira, com comida gostosa e apimentada. Sem falar das praias maravilhosas. Que saudade! Nordeste para mim é vida e Ceará, especialmente. Pacatuba é amor.

Ceará terra de gente de sorriso farto, terra de gente inteligente. Tem o famoso clichê de que todo cearense é engraçado. Sem falar da tradicional vaia cearense. Mas o texto não tem esse propósito, tem coisa não tão boa também como a seca, isso me faz lembrar da música Súplica Cearense.

“Meu Deus

Perdoe encher meus olhos d'água

E ter-lhe pedido cheio de mágoa

Pro Sol inclemente

Se arretirar, retirar

Desculpe, pedir a toda hora

Pra chegar o inverno e agora

O inferno queima o meu humilde Ceará”

Cresci em uma família com mulheres, tem isso... a grande maioria das casas é uma mulher a provedora. Moramos em uma casa de taipa até os meus 14 anos, a energia elétrica só chegou quanto eu tinha 13 anos, água encanada chegou também nessa época, mas ficava dias sem sair uma gota da torneira. Lembro das latas d’água na cabeça que tive que carregar inúmeras vezes. Isso me faz lembra da música Lata D’ água na cabeça:

“Lata d'água na cabeça

Lá vai Maria, lá vai Maria

Sobe o morro e não se cansa

Pela mão leva a criança

Lá vai Maria”

E as Marias vão se repetindo na minha vida. Hoje conto minha história com orgulho e sei que graças a ela sou a mulher de hoje. Mas e o vídeo que deu origem a esse texto? 

O vídeo é Vida Maria um curta que tem no Youtube. Não fosse pela familiaridade dessa realidade escancarada, nua e crua retratada pelo vídeo, poderia qualificá-lo como "doce", manso e suave. O vídeo é um dos melhores curtas que já vi em toda minha vida. Nem sei o que dizer, uma mescla de vontade de chorar, com não quero ser mais uma Maria.

E a mulher que sou hoje, primeira da minha família a fazer um curso superior, graças ao sistema de cotas estou formando em psicologia. Continuo galgando degraus maiores e não quero mudar não só a minha vida, quero mudar a cabeça de outras meninas que assim como eu tenham o complexo de “Maria” nas suas vidas.

Vou falar sobre as Marias da minha vida. A primeira é minha avó, uma mulher negra, foi empregada doméstica. Minha avó criou dez filhos mais alguns netos ao longo da sua vida, e euzinha fui um desses. Ela mal sabia escrever seu nome, via ela lavar montantes enorme de roupas, ela lavava roupa para ganhar alguns trocados que as vezes dava pra ela comprar a mistura da comida, mas nunca a vi reclamar da vida dura que teve, era uma mulher caridosa que sempre te recebia com muito amor e colocava mais água no feijão para dá pra todo mundo.

A segunda é minha mãe, também mulher negra, também é empregada, se a cina da Maria se repete isso quer dizer que eu também seria empregada? 

Eu via minha mãe, cheia de dores, ir todos os dias limpar a casa de alguém para ganhar 100 reais. Não por dia ou quinzena, mas por mês. As coisas aliviaram um pouco quando criaram o Bolsa Família, isso ajudou um pouco lá em casa. Mamãe também é uma dessas Marias, ela concluiu o ensino fundamental depois dos 40 anos com o EJA. Trabalhou duro a vida inteira. Me lembro de que ela não gostava de abraços quando eu era criança, isso me fez lembrar do texto da Bell Hooks, "Vivendo de Amor".

Hoje entendo os processos de mamãe “muitas mulheres negras sentem que suas vidas existem pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público, essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.” Cito esse trecho porque ele me fez entender minha mãe. E assim como o texto, não gosta de contar sobre suas dores.

Voltando ao vídeo, naquele momento não percebi, mas ele mudou minha vida. Aquele vídeo ficou enraizado em mim e eu sei que não é fácil, mas vou ter uma vida diferente e de alguma forma já estou tendo. Vou conquistar coisas que minha avó e minha mãe jamais imaginaram para mim. Vou dar para minha mãe uma velhice no mínimo confortável. Isso que me impulsiona e me motiva todo os dias a continuar lutando contra o complexo de vida Maria.

É incrível como o tempo, a paciência e a persistência nos ensinam a superar as dificuldades e a encontrar o melhor de nós. Sei que ainda falta muito para superar a Maria, mas vou continuar lutando contra as desigualdades sociais do nosso país.

“Vida Maria” mostra-nos o cenário real da falta de estrutura, conjugada com o abandono do poder público, com a disparidade na distribuição de renda, com os baixos índices de escolaridade e com a marginalização do preto pobre. E esse cenário se repete anos após anos, décadas após décadas e assim a vida de tantas “Marias” se repetem e se reproduzem. É essa vida que quero mudar.

Acho que enfim descobri a resposta para a pergunta “por que ele me mostrou aquele vídeo?”. Para ajudar a pôr um fim a esse ciclo vicioso de Vida Maria.


Nataly da Silva

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