Intersecção e Trabalho, Uma Narrativa Preta

Intersecção e Trabalho, Uma Narrativa Preta

Fiz esse texto sem pretensões nenhuma de ser acadêmica, primeiramente por não me considerar acadêmica. Eu sou da experiência, da vivência e do experimento. A teorização se constrói a partir desses pilares muitas vezes. Porém, não me sinto neste lugar. E talvez nesse texto fique evidente de onde e para quem eu falo. 


Criada na Favela. Mulher. Afrobrasileira. Negra. Traços finos. Cabelo cacheado. Pele clara. Cresci no limbo preta demais pra ser branca, branca demais pra ser preta. Me identificar como negra, no país que tem como ideal a branquitude, soava incomodo demais, não pra mim mas para os outros. Sempre tentaram me tirar do meu lugar de pertencimento, de reconhecimento. Mas o sistema é implacável e como um amigo disse: não precisa se preocupar o sistema nunca erra quando se é negro. 


Logo, retomo para minhas experiências e percebo que aos 15 anos, quando fazia umas faxinas nas casas de classe média ninguém se assustava. Era comum, natural. Aos 15 anos, alguns jovens privilegiados estão se dedicando aos estudos para o Enem. Não tive tempo pra isso. As empregadas domésticas constituem uma categoria marcada pela baixa escolaridade segundo senso de 2010, 60% da classe tem até o fundamental incompleto. 


Dos 17 aos 21 anos, trabalhei como babá. Passeava na pracinha com a criança que olhava e lá era nítido as desigualdades. As babás segregadas no espaço, com suas roupas brancas, em sua maioria negras, pelo senso 61,6%, brincando com as crianças brancas, enquanto seus filhos ficavam com as vizinhas, escolas, parentes. Muitas delas com carga horária exaustivas, dormiam nas casas. Não tinha hora para dormir, mas pra acordar era bem cedo, antes da criança para organizar tudo e deixar pronto. Negra demais pra ser confundida com os moradores do bairro de classe alta. Negra demais para naturalização do subemprego.

 

Não há juiz de valor, todo trabalho é digno. Mas vocês sabiam que as babás e empregadas domésticas vivem sobre a precarização do trabalho? Com retirada de direitos e condições sub-humanas. Sem contar as diversas violações e violências. Parafraseando Maria W. Stewart "Até quando as nobres filhas da África serão forçadas a deixar que seu talento e seu pensamento sejam soterrados por montanhas de panelas e chaleira de ferro?". Quando o trabalho doméstico não é uma escolha pessoal e sim uma necessidade para sobrevivência, são enterrados ou adiados sonhos, pensamentos, produções e vidas. 


Aos 22 anos fui para escola, lecionar no Projeto Escola Integrada. Um dia fazendo um bico de babá para complementar a renda, me perguntaram onde estava trabalhando e eu respondi orgulhosa: trabalho em uma escola. Com olhares perplexo veio uma afirmação misturada de uma pergunta: você trabalha na faxina né!? Ou na cantina? 


Negra demais pra sair do sub emprego. 


Aos 21 anos, ainda no ofício de babá, inicie a graduação em Psicologia. Ouvia quase que corriqueiramente "viu, quem se esforçar consegui!". A velha lógica da meritocracia que só existe na mente doente que o neoliberalismo constrói.

 

Fiz essa breve contextualização para tentar ilustrar algumas dinâmicas sociais. Raça, gênero, classe e trabalho, estão intrinsecamente relacionados. 94,4% das trabalhadoras domésticas são mulheres. As trabalhadoras compõe a classe baixa, muitas, moradoras das favelas, ocupações e zona rural. Iniciam desde cedo, enterrando suas vidas para cuidar de outras. 


Mediante tanto caos vivenciados nesses últimos dias, resolvi escrever esse texto para falar que as nossas meninas merecem escolher seu espaço. Não só merecem, mas necessitam de políticas públicas que garantam educação, formação profissional de qualidade para sanar esse mal que nos assombra desde a escravização.

 

Termino com Maria Carolina de Jesus "Aqui na favela todos lutam com dificuldade para viver. Mas, quem manifesta o que sofre sou eu. E faço isso em prol dos outros."

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Autora do texto: Érika Divina

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